Nos cultos de muitas igrejas de libertação, objetos
variados são empregados como canais de bênção. Eles são ungidos (abençoados)
nos cultos com o objetivo de passarem ao fiel algum tipo de benefício. Os mais
comuns são a água fluidificada (colocada sobre o rádio ou TV durante a oração
do “homem de Deus”), a rosa ungida, ramos de arruda, sal grosso, óleo, água,
vinho, pedrinhas trazidos da “terra santa” (Israel), fitinhas, pulseiras e
lenços.
Embora os líderes dessas igrejas insistam que esses
objetos abençoados funcionam apenas como apoio para a fé dos crentes, ao fim,
acabam sendo usados como talismãs, fetiches e outros objetos “carregados” de
poder espiritual. Os seus possuidores devem usá-los de acordo com algum tipo de
ritual, após o culto. A água pode ser bebida em casa, após a oração de
consagração. O “cajado de Moisés” deve ser usado para bater naquilo que o
crente gostaria de ter (um carro novo, por exemplo). Lenços ungidos devem ser
carregados junto ao corpo por determinado tempo, geralmente durante o tempo de
uma corrente de oração.(1)
Muitas vezes objetos são “abençoados” nessas
igrejas com o objetivo de espantarem e expelirem demônios. A idéia que está por
detrás desse uso religioso de artigos e objetos é o de que as entidades
espirituais (anjos e demônios) podem ser atingidas através dos sentidos como
cheiros, cores, gosto e vozes. Nesse ponto os cristãos do primeiro século se
afastaram significativamente das práticas exorcistas do Judaísmo da sua época,
que foram desenvolvidos no período intertestamentário. Os métodos rabínicos de
tratar com demônios incluía o uso de tochas de fogo à noite, amuletos,
filactérios,(2) fórmulas mágicas, fumigações, entre outros. A idéia era que
essas coisas teriam em si algum tipo de poder mágico contra os demônios.(3) No
cristianismo primitivo, entretanto, a idéia de que demônios pudessem ser
atingidos através de sons, cheiros ou coisas materiais e tangíveis, está
ausente.
É importante dizer que não duvido da sinceridade e
da boa-fé dos que empregam esses objetos. Entretanto, podemos estar
sinceramente enganados no que diz respeito ao culto a Deus, como os judeus na
época de Paulo (Rm 10.1-2). É minha convicção que o uso desses objetos como
apoio para fé ou canal de bênçãos não faz parte do culto agradável a Deus que
nos é ensinado nas Escrituras.
Entendendo o uso de objetos na Bíblia
Salta aos olhos de quem conhece as práticas
religiosas populares que o uso de objetos ungidos pelas igrejas de libertação é
bastante semelhante ao benzimento de objetos no baixo espiritismo, artes
mágicas e no ocultismo em geral. Entretanto, essas igrejas argumentam que a
prática tem base na Bíblia. Provavelmente a passagem bíblica mais citada é Atos
19.12, onde se relata o uso dos aventais e lenços de Paulo para expulsar
demônios em Éfeso. É preciso salientar, entretanto, que esse acontecimento é o
único do gênero que temos registrado no Novo Testamento. Fez parte dos
“milagres extraordinários” que o Senhor realizou em Éfeso pelas mãos de Paulo
(At 19.11).
Devemos interpretar essa passagem da mesma forma
como interpretamos os relatos do Antigo Testamento sobre o cajado de Moisés (Ex
8.5,16) e o manto de Elias (2 Re 2.8,14). Esses objetos foram veículos
materiais do poder miraculoso desses homens. O propósito das narrativas acerca
do poder que havia neles foi mostrar o extraordinário poder de Deus nas vidas
dos seus possuidores, comprovando que a sua mensagem vinha realmente da parte
de Deus. O ponto é que esse poder era tão grande que até as coisas com as quais
Moisés e Elias tinham contato diário se tornavam canais através dos quais ele
era transmitido.
Além dessas ocorrências no Antigo Testamento
mencionadas acima, outros eventos são citados como justificativa para o uso de
objetos como veículos do poder divino. Moisés fez uma serpente de bronze (Nm
21.9). Eliseu usou um prato novo com sal para miraculosamente sanar as águas de
Jericó (2 Re 2.19-22), um pouco de farinha para purificar uma comida envenenada
(2 Re 4.38-41), um pau para fazer flutuar um machado que caiu no rio (2 Re
6.1-7). Sob seu comando, as águas do Jordão serviram para curar a lepra de
Naamã (2 Re 5.1-14). Seu bordão parece que era usado para realizar milagres (2
Re 4.29) e seus ossos ressuscitaram um morto (2 Re 13.20-21). O profeta Isaías
usou uma pasta de figos para curar Ezequias (2 Re 20.7).
Alguns eventos narrados no Novo Testamento são
também citados como prova. As vestes de Jesus tinham poder curador. Não somente
a mulher com um fluxo de sangue foi curada ao tocá-las (Lc 8.43-46), mas muitas
outras pessoas doentes (Mt 14.36; Mc 6.56; cf. Lc 6.19). Em pelo menos duas
ocasiões, Jesus usou saliva para curar cegos (Mc 8.22-26; Jo 9.6-7), e em
outra, para curar um mudo (Mc 7.33). Aparentemente, a sombra de Pedro, após o Pentecostes
em Jerusalém, acabava por curar a quem atingisse (At 5.15).
Devemos entender, entretanto, qual o objetivo
dessas narrativas. Em todas elas, o conceito é sempre o mesmo. Jesus e os
apóstolos eram tão cheios do poder de Deus que as coisas com as quais tinham
contato íntimo se tornavam como que em extensões deles, para curar e abençoar
as pessoas. O objetivo é idêntico: enfatizar a enormidade do poder de Deus em
suas vidas, e assim, atestar que a mensagem pregada por eles, bem como pelos
profetas do Antigo Testamento, vinha de Deus. A prova eram os poderes
miraculosos tão extraordinários que até mesmo vestes, bordões, ossos, saliva,
sombra e lenços desses homens transmitiam o poder curador de Deus que neles
havia. É dessa forma que devemos entender o relato de Atos 19 sobre o poder
curador dos lenços e aventais de Paulo.
Evidentemente, essas passagens não servem como
prova de que, hoje, as igrejas evangélicas podem abençoar objetos e usá-los
para expelir demônios, proteger seus possuidores contra forças negativas e
curar moléstias. Notemos as principais diferenças entre o uso destes objetos
nos relatos bíblicos e o uso que é feito hoje pelas igrejas de libertação.
1. Foram
usados como símbolos – Em vários casos, o papel de objetos na execução
dos milagres bíblicos é melhor entendido como tendo sido simbólico. De
alguma forma estavam relacionados à natureza do milagre: uma serpente de bronze
para curar mordeduras de serpentes, um pedaço de pau para fazer um machado
flutuar, sal e farinha para purificar águas e comida (os dois elementos eram
usados nos sacrifícios), ossos para trazer vida e água do Jordão para “limpar”
a lepra. Nas igrejas de libertação, muito embora se diga que os objetos
funcionam simbolicamente como apoio para a fé, acabam sendo aceitos pelos fiéis
menos avisados como possuindo em si mesmos alguma virtude ou poder.
2. A
natureza dos milagres em que foram empregados – Os
objetos fizeram parte de milagres que não vemos serem repetidos hoje. A melhor
maneira de provar que o uso de objetos ungidos hoje opera a mesma liberação do
poder divino como nos eventos relatados na Bíblia, seria abrir rios,
ressuscitar mortos, curar leprosos, cegos e aleijados, sanear águas amargas e
limpar comidas envenenadas usando objetos pessoais dos missionários e obreiros
dessas igrejas. Entretanto, os “milagres” efetuados pelos objetos ungidos nas
igreja de libertação nem de perto se assemelham aos prodígios extraordinários
narrados nas Escrituras.
3. Seu
uso limitou-se ao momento do milagre – Nenhum dos objetos empregados na Bíblia
preservaram algum “poder” em si mesmos após o milagre ter ocorrido. A serpente
de bronze, até onde sabemos, não foi mais usada para curar mordidas de
serpentes após o incidente no deserto, muito embora os judeus supersticiosos
passassem a adorá-la como a um deus. É natural supor que Eliseu, após usar o
manto de Elias para abrir as águas, usou-o normalmente como peça do seu
vestuário, sem que o mesmo exercesse qualquer poder mágico nas coisas em que
tocava. O sal, a farinha e o pedaço de pau que ele usou para fazer milagres
foram tirados da vida normal e retornaram a ela após seu uso. Não retiveram
qualquer propriedade miraculosa em si mesmos. Semelhantemente, os lenços e
aventais de Paulo tiveram um uso especial somente em Éfeso, e provavelmente
somente durante um determinado período, ao longo dos três anos que o apóstolo
passou ali. Em contraste, as igrejas da libertação ungem e abençoam objetos e
atribuem a eles efeitos que permanecem muito tempo após a cerimônia. É algo bem
diferente do uso ocasional feito pelos profetas e apóstolos.
4. Os
objetos estavam ligados à pessoa dos homens de Deus – Alguns
dos objetos usados eram coisas pessoais dos homens de Deus, como a capa de
Elias, o bordão de Eliseu, as vestes de Jesus, os lenços e aventais de Paulo e,
num certo sentido, a sombra de Pedro. Eles só foram empregados por isso. O alvo
era mostrar o extraordinário poder de Deus sobre tais homens. Quando refletimos
no fato de que somente coisas pessoais dos profetas, do Senhor Jesus e dos apóstolos
foram usadas, perguntamo-nos se nossos objetos pessoais teriam o mesmo poder. A
resposta humilde deve ser “não”. Os profetas, o Senhor e os apóstolos foram
pessoas especiais e pertenceram a uma época especial e única dentro da história
da revelação. A suspeita de que nossos objetos pessoais são impotentes para
realizar milagres fica ainda mais fortalecida quando não descobrimos nas
Escrituras qualquer exemplo de coisas dos crentes comuns sendo usadas com esse
fim.(4)
5. Nenhum
dos objetos empregados foi ungido ou abençoado – Essa é
uma diferença fundamental. Nas igrejas de libertação, os objetos são ungidos,
abençoados, fluidificados e consagrados através da oração e da imposição de
mãos dos pastores e obreiros, depois do que, passam supostamente a ter poderes
especiais. No entanto, em nenhum dos casos mencionados nas Escrituras, os
objetos empregados nos milagres passaram, antes, por uma cerimônia de
consagração. A Bíblia desconhece totalmente a “unção” de coisas com o fim de
serem empregadas em atos miraculosos, para atrair as bênção de Deus, ou ainda,
para expelir demônios e doenças. É verdade que no Antigo Testamento alguns
objetos, utensílios e mobília do tabernáculo, e depois, do templo, foram
ungidos com sangue e óleo. Mas o propósito não era investir essas coisas de
poderes especiais, e sim separá-las do seu uso comum para o uso sagrado
nos rituais de sacrifício. Eliseu não ungiu nem consagrou, pela oração, o sal,
a farinha e o pedaço de árvore que usou para operar milagres. Nem Isaías ungiu
a pasta de figo para curar a úlcera de Ezequias. Nem mesmo a serpente de bronze
passou por uma consagração, antes de ser erigida diante do povo envenenado
pelas serpentes. Os lenços e aventais de Paulo não passaram pela imposição de
mãos do apóstolo antes de serem levados aos doentes e endemoninhados. O que
dava “poder” àqueles objetos era o fato de que pertenciam, ou foram
manipulados, por pessoas sobre quem o poder de Deus repousava de forma
extraordinária.
A conclusão inescapável é que não existe qualquer
fundamento bíblico para que, hoje, unjamos e abençoemos objetos com o propósito
de transmitir, através deles, uma medida do poder de Deus. Mais uma vez repito:
creio que Deus faz milagres hoje. Creio que ele poderia usar o que quisesse
para fazer isso. Entretanto, creio também que Deus nos revela em Sua Palavra os
seus caminhos e seus meios de agir, para que não sejamos iludidos pelo erro religioso. E se vamos usar as
Escrituras como regra da nossa prática, bem como critério para discernirmos a
verdade do erro, acabaremos por rejeitar a idéia de que, pela oração e unção,
determinados objetos repassam uma bênção de Deus aos seus possuidores.
Augustus Nicodemus Lopes
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